30 de janeiro de 2010

Tinta poética


       Á Daniela, pela maravilha das suas telas.

       Era uma vez alguém que pintava...
       Das suas cores como ondas debruçava-se o oculto inicial dos corações.
       Tinha-se decidido: Ela tinha tons como pássaros, não eram ruidosos, mas de amor e de ternura, olhavam o mundo como o vento, como a chuva, com as asas na noite desconhecida, trazendo cada ser até á própria labareda.
       Eram pinceladas num ar de ribeira quando nasce e uma forma repleta de passos de indagar, inclinando-se para um centro concêntrico, um ponto crucial.
       Os meus olhos observavam-nas lendo-as, como de se movimento da alma contra o espelho, investigando a força por dentro das cores.
       Por detrás do dia o tempo passou, enchendo a delicadeza das folhas e dos frutos.
       Nem me tinha dado conta que estava numa espécie de estática loucura, à espera que as águas, os astros e as preces caíssem das telas numa fechada exaltarão.
       E tudo surgia entre o espaço violento dos dias do sentir e a simplicidade dos seres.
       Durante muitos dias o espírito da pintora caía de dentro das suas mãos para o rugoso do papel.
       Talvez por isso me tivesse dado para senti-la e à forma como se mostrava cúmplice da chuva, das noites e dos seus personagens vagarosamente purificados.
       Fui vendo nascer o sonho de incontidas primaveras, árvores inspiradas, mãos escurecidos de tempo, olhos de incalculável ausência e a candura quase a corromper-se à força da candura.
       Havia esta mulher, que pintava como pelo orvalho do sentir, pintando, corações extasiados, respirando como luzes transformadas, como uma qualidade ardente de uma para outra coisa.
       No meio desta arte a sua tinta era total, estando de tal modo embebida que vivia unicamente.
       Rompe-se o espaço, transponho a distância e vejo nos seus quadros, rostos extenuados, envolvidos pelo silêncio, ganhando uma duração de sombras inclinadas, no perfeito coração do tempo.
       À sombra das suas mãos, ali estava ela, transmudada nas suas telas, colocada na doce integridade do espaço, e na imobilidade das cores, o pudor da imagem onde coagula a leve espessura dos corações, esses que ardem na assimetria festiva e sagaz das lunações e dos rios.
       Fiquei-me a pensar, cada um dos pensamentos daquela mulher que pintava, sentindo-a tão forte e tão preenchida pelo quente silêncio do que se não sabe.
       Aconteceu esta pintora pelo meu silêncio dentro, porque as cores cantavam nas suas mãos respirando como as árvores soprando de dentro das sementes.
       A noite corre, o ar insufla o tempo, eu olho as telas por onde escorre o silêncio aplainado noutra cor, e pergunto: Onde vais assim encostada à rosácea do teu coração?
       Sorria em mim a pintora de sonhos, como se a meia voz se entontecesse a vida, dolorosa e doce absorção do toque dos tons, pelo ritmo: Alquimia, conjunção astral, o que quiserem!
       São as próprias cores das aves nas suas tintas, digo eu que sou tu cá, tu lá com os pássaros.
       Nem todos os quadros têm o dom de serem habitáveis.
       O meu quadro da “Menina persistente” é como uma história-casa que habito.

 
       Obrigada

Cais demorado

     Retirou a maré submersa... um tempo... um cais demorado.,. um pão ázimo... no tempo da memória a ilha mingou.
       Maria sabia que as férias estavam a chegar, subia as escadas do sótão num ar de ciclone, aprontava o saco de viagens... voavam pelo ar todas as coisas e mais a vontade daquelas férias, de permeio a ideia de se ausentar.
       Sentou-se na cama da colcha de farrapos, que já tinha ido a S. Jorge no Terra Alta e chegado ao Porto de Pipas com um rato l á dentro... "rato com pretensões a turista".
       Num sobressalto ergueu-se, tinha de levar aquele livro de histórias, e ainda a melhor maneira de o fisgar à irmã...
       Arre! Aquele buraco no chão era um desatino, a mãe já lá tinha enfiado uma perna, ficando com ela a abanar no corredor, o que por certo não lhe aconteceria, dadas as suas frequentes viagens àquele lugar de garrafas, cestas, caixas e uma cama (sempre vinha um. parente de algum lado).
       Ainda havia mais um, dia de aulas, depois partiria.
       Era um desassossego... depois Rafa não estava lá, deixara-lhe um tempo vazio povoado de fantasmas... Parou a mala a meio do sótão, e num sonho acordado de tristeza ressequida, chorou todas as lágrimas da saudade.
       Às vezes embrulhava-se toda em ondas de recordar e lá ia por todos os caminhos que tinha percorrido num velho "Volks", velho e verde. Tudo tinha sido verde entre eles e as palavras que vinham do espaço de sentir.
       Caminhos velhos que ela queria recordar para acreditar, mas que no fundo nunca mais voltariam, vivia entre eles e pelo meio o canal das palavras que se sentiam e não se diziam, ficando sempre por dizer.
       Rafa tinha partido num barco cheio de fardas e boinas, revoltas e medos... atravessaram o Oceano cartas que escrevia à luz mortiça do quarto, era o tempo de se encontrarem, aliviava-lhe aquela ausência... mandava-lhe palavras feitas sorrisos em envelopes de janela, com abraços escondidos pelo meio das reticências.
       Maria odiava aquela guerra.
       Levantou-se, saco de viagem na mão, cheio de coisas e duas cartas... O mar era um turbilhão de azul e paz, as pernas ainda mareando, acampou no cais do Pico.
Os homens carregavam sacas cheias de cracas, e as mulheres coziam pão redondo, achatado, com sabor a milho e tocavam viola da terra noite a dentro.
       Já não podia mais!
       Tinham passado semanas.
       Manhã cedo juntou os cacos, fez um lugar na Espalamaca, até ao Faial.
       Meteu-se no Espírito Santo... rumou à ilha dos bravos, às suas coisas.
       Com a força de todos os ventos que não tinham eco em lugar nenhum, voltou para o sótão.
       Com as lembranças, dormiu muitas noites na sua cama da colcha de farrapos, esperou, e deitou-se e acordou com aquela espera... perdida por fora, sábia por dentro.
       E vivia quase como um canário, que haviam fechado na gaiola e pendurado num arame da trave mestra e que nem o chiar da rolha no vidro da garrafa animava.
       Pássaro sem nome.
       Rafa voltou e riram e pintaram numa tela de esperança um verde novo, durou pouco aquela tinta, pintada à pressa com medo de acabar.
       Mais folhas tombaram do calendário e ele partiu. Maria voltou a esperar que o tempo se cumprisse.
       No peito onde o guardara, cresceram nós, ganchos, âncoras...
       ...Joaquim, o carteiro abanava o corpo num andar marítimo...
       ..."E não há nada menina... para a próxima!...
       Rafa viera e partira, correndo a vida rápida entre o amanhecer e uma lágrima que doía pelo espaço que havia para sorrir.
       Maria avançou por dentro de si devagarinho, cortou cada nó, cada gancho, soltou as ancoras, guardou tão só um novo renascer que havia de florir em qualquer campo verde.


Histórias com vidas lá dentro


       Remexendo em caixotes, descobrindo papéis, encontrei “isto” que aqui vos deixo e que foi na altura, uma tentativa de cativar crianças para a poesia.


       Sensações:
       Escolhe uma emoção ou um sentimento como por exemplo:
       Medo, vaidade, liberdade, timidez, amor, tristeza, alegria, gulodice, repulsa, saudade, etc., e escreve um poema com algumas das seguintes perguntas:
       Tem cor? Qual é!
       Tem sabor? Qual é!
       Tem cheiro? Qual é!
       Qual a sua temperatura? Escaldante, quente, amena ou suave, fria, gelada ou gélida, etc.
       Tem som? Qual!
       Tem movimento? Qual!
       Tem peso? Qual? Pesado, leve, frágil, etc.
       Como te faz sentir?


       MEDO
       O medo é preto
       Sabe a brócolos
       Cheira a fumo
       É muito gelado
       Tem o som do vendaval
       O movimento do lençol
       É muito pesado
       E faz-me sentir triste

       ALEGRIA
       A alegria é vermelha
       Sabe a chocolate
       Cheira a doce de morango
       É escaldante
       Tem o som do riso
       O movimento do lábio
       É leve como uma pena
       E faz-me sentir contente

       Bruno Miguel Teixeira Vicente


       E assim descobri um poeta numa criança de nove anos!

       Obrigada Bruno

E esta, quem será?

29 de janeiro de 2010

Divagando no lado do avesso

... que dizer se estou triste... estranha subtileza      que não diz de onde vem...
... que dizer deste pasmo, marasmo... quando toda eu sou asa      e me falta espaço...
... saudade é uma perfeita mágica e      dolorosa encruzilhada...
Não sou daqui...      daqui, digo, deste tempo, lugar e nome...      tiro a mordaça e sou só      um pássaro...
... por dentro de mim há um labirinto... que vou descobrindo desde que me disse: Nascí!
... e à nascença, deram-me este invólucro... para que se esconda esta que sou... e esta que sou, rompe as amarras, rasga caixilhos... e vive liberta... sem olhos de terra...
... se em toque de magia, luta ou leveza, se transformasse este corpo que me habita, em onda espraiada...      então por fim descansaria...
... dolorosamente abre-se em mim uma estrada, que no odor do meu corpo se espanta      concha de silêncio, engolindo trevas      no suor do tempo e dos astros, me confundo      toda eu      num respirar de versos e guelras      marítimas raízes...
... solta e nua, sou esta força de braços aflitos, rosa dos ventos      fluida e dispersa nas velas dos barcos...
Devassada e nua, sou esta, na margem das lágrimas, vestindo a vida de asas...

22 de janeiro de 2010

Bichinho de conta

       À minha amiga Dorzinhas, Barcelos de sobrenome, irmã do peito sem nome, que com o seu ar angelical, caracóis curtos ao vento, olhos azuis de pasmar, me ajudou a vir a ser Mizé de contos contar!


Bicho de conta que conta
Conta um conto,
Conta... conta!
Nesta rima que desponta
Quantas contas tem o terço
Que a avó Benta passa atenta
Entre os dedos que tem contos,
Tantos, tantos, como as mossas
Que tem nos nós dos seus dedos.
Bicho de conta tem histórias
Lá prós lados dos Açores,
Conta-nos histórias de fadas
Junto com histórias de amores.
Bicho de conta que sabe
A sua vida enrolar,
É filho de Dona conta
Dona conta de contar.
Este bichinho de contar
Sabe de geografia,
Não é só bicho de conta,
É um bicho em quem se fia.
Em criança lá nas ilhas,
Entre todas muitas milhas,
Para os dias ver passar,
Toca-se no bicho de conta
E toca de perguntar.
Ó meu bichinho de conta,
Meu bichinho bichiel!
Diz-me lá bicho de conta,
Pra que lado é S. Miguel?
Ó meu bichinho de conta,
Não te enroles faz favor,
Diz-me lá que eu sei que sabes,
Eu sei que tu sabes tal,
Diz-me lá bicho de conta,
Pra que lado é o Faial?
E não é que este bichinho,
Que gosta de pedras e musgo,
Terra fofa, húmida quentinha,
Ao desenrolar-se e virar-se,
No seu corpo cinza prata,
Nos dá a direcção exacta.
E fica aqui esta história,
Que termina só no fim,
Deste bichinho de conta
Que não é só bicho de conta,
Mas um tatu de jardim!
E não se fiquem a rir
Com a minha lenga-lenga,
Assim toda rimadinha,
É que este bicho de conta
É também tatu-bolinha!
E com tanto conta, conta,
Neste modo de contar,
Fiquei uma mosca tonta!
Tenho que a rima acabar.


20 de janeiro de 2010

Palavras no peito ao acaso… para renovar a vida!

       Sou do mar, sou da ilha, da terra dos Bravos, do cheiro verde, do toque da onda, do infinito suspenso na aragem do ar, do mormaço dos verões, do vento assobiador do Inverno, do choro do garajau, do branco-cinza dos cagarros, da leveza das gaivotas... Das casas caiadas de branco-branco e de barras coloridas, do tempo quente e húmido, dos tons caprichosos do mar e do céu. Do azul ao anil, do turquesa ao vermelho, até ao cinza prata e chumbo... do seu sossego, do seu desatino, da imensidão da pequenez e da perdição da imensidão, do estado de outra dimensão, da quietude tão equilibrada da calmaria do tempo. O tempo que concede tempo ao tal qualquer sortilégio que a ilha tem, que prende e cativa, que consola e encanta e abranda a alma. Um som de viola da terra pressentido no cheiro forte da vida que brota plena de todos os recantos.
       Um tic-tac, de galocha bordada... Uma lágrima nos “Olhos Pretos”, uma saudade na “Lira”, uma alegria na “Chamarrita”.
       Que linda és tu, minha ilha!
       Com teu ar lavado, como se de noite andassem faunos pelo ar a varrer-te os serrados, regando hortênseas, glicíneas e azáleas, a caiar-te as casas e quintais e te perfumassem para o dia com o cheiro das ameixas pretas apregoadas pelas ruas em cestos, vindas das “ilhas de baixo”!
       E todo o mar é meu caminho! Assim sou uma Terceirense “empedernida” com distinção, de alma inteira, com umas costelas Jorgenses, umas raízes flamengas e um coração Beiraltino.
       As minhas mãos não seriam nada sem o coração, e como diz o poeta, não são as palavras que têm erros, quem erra é a vida, erros “desortográficos”...


10 de janeiro de 2010

Sortilégios

       O seu coração tinha uma varanda. Era dela que via o mundo.
       Não sabia se toda a gente tinha uma varanda; nem se tão pouco uma janela.
       Tinha também uma casa habitada pelos seus sonhos, pelas suas dúvidas pelas certezas, e também pelas incertezas.
       Nela sentia-se protegida. Por isso, habitava-a plenamente, jamais se sentindo só em toda a sua solidão.
       Á medida que o tempo passava, mais ia sentindo a quietude daquele lugar-casa-moradia-do-coração. Era lá o seu descanso, onde estava tudo aquilo que era importante.
       É verdade que a vida é cheia de coisas, de experiências, e acontecimentos, mas parecia-lhe igualmente verdade que só alguns são verdadeiramente importantes.
       Aquela sua casa tinha um quintal e um ar cheio de muitas árvores, ela havia de encontrar o caminho de outras portas. Porque ali era Primavera, e andava tudo a florir. Ela havia de encontrar o sítio onde as suas mãos costumavam ir apanhar frutos.
       E foi assim que um dia percebeu, que estava a esquecer as pessoas.
       Por mais estranho que parecesse, a sua presença habitava também a sua casa redonda.
       Assim, esta era parte da sua realidade, já que toda a realidade se baseia na certeza, mesmo perante os desígnios mais improváveis. Era para isso que servia aquela casa, para dar guarida até para aquilo que havia de mais impossível.
       Não podia deixar que toda a existência lhe soubesse a um silêncio magoado.
       Existir era uma sorte e um dom.
       Tinha que haver outra forma de estar e sentir, um sítio redondo, inteiramente leve e simples.
      Ela sabia que havia alguns sítios onde se podia estar mais próximos dessa moradia interna, junto aos rios, por exemplo.
       Mas é sobretudo no peito que há um espaço tão imenso, e nele tudo cabe. Cabe, porque só aí tudo é inteiramente leve e simples, porque só aí se dá, e se não pede, coexistindo o pequeno e o grande, o pesado e o leve, o perto e o longe, o agora e o antes, o futuro e o passado, o que somos, e aquilo que nos define e marca para sempre.
       Aí não existem viagens para sempre, mas apenas maneiras diferentes de sermos, coisas tão imensas que temos de as guardar ao centro, no lugar do peito, para as não perder.
       É que as verdades, as grandes, as imensas, aquelas que são realmente importantes, fazem-se da matéria dos sonhos:
       - Jamais se gastam!
       Tinha levado o tempo todo a esperar, e estava ali.
       Talvez fosse uma outra, que não ela, pensando por ela com o seu rosto.
       E essa, sabia ao que era.
       Sabia, que do fundo do tempo imponderável, e sem estações do ano, alguma coisa muito verdadeira e inicial a levara até ali.
       Uma sinfonia de luz e vento brando erguia-se em acordes na sua cabeça, enquanto os seus olhos se enchiam de sal e água pura. Uma ave entrou, vinda dos confins da noite.
       Pensou que era assim que a semente do trigo se devia sentir no fundo da terra. E decorou para sempre o coração dele.
       Quem chamaria nos seus sonhos?
       Não ela! Mas a mulher que nela dormia, cansada de preconceitos, cansada de olhar a sua pele, de navegar na noite acesa dos seus olhos, e nunca se ter permitido mostrar, com seus desejos de terra fértil.
       Ele fizera-a sentir-se reconciliada com essa mulher, que renascia, e estava ali cheia de paz, acreditando que o amor pode ser.
       Tinha-se debruçado naquelas paisagens do peito, do coração!?
       E continua a encontrar as marcas da sua presença na vida dela, penetrava nelas, deixando-se ir, diluindo-se na leveza transparente do sentir.
       Comoveu-se.
       Constatou que aquele sentir era como o mar, tão imenso, que só no sentir lhe podia tocar.



8 de janeiro de 2010

Ave de arribação

       ... Era uma vez uma mulher chamada Júlia... tinha dois olhos lagos azuis, cinco filhos e passava os dias a correr por fora, embalando ternuras no peito...

       Joaquim era assim um "lobo-do-mar" (sem cachimbo), tinham-lhe dado à nascença o universo das palavras despedidas, numa nebulosa de inquietação.
       Passeando o seu corpo d’ilheu lá prós lados do Fanal, bebia as horas como sanguessugas, arrastando sapatos de silêncios escorridos.
       Quatro horas... apanharia a camioneta, ali na Carreirinha, tanto montava. Aquela hora já lhe tinha ordenhado as vacas (a sua Júlia que nunca lhe tinha dado uma escândula).
       Irritava-se todo, ouvindo palavras daqui, palavras dali...
       ... E as terras não dão... e o padre que diz:
       "Abençoadas esmolas que vem pró Divino Espírito Santo... e é muito dinheiro, que aquilo da América é terra de fartura...”
       Ele era ave de arribação.
       Como o vento... como aqueles caniços ali tremendo contra as rochas, à espera de mãos de menino de aventura.
       Como lhes havia de dizer que ia prá América?
      Entre o cheiro de gasóleo e o engrenar das mudanças, chegou a casa, portas dentro do seu sonho escondido.
       Senta-se quieto e mudo no banco pintado d'azul mordendo a véspera das palavras.
       Júlia metia a pá no forno. O cesto das vindimas c’os pintos lá dentro era uma onda irrequieta como aquele seu coração.
       "Ó Júlia dá-me a celha, e bota-lhe uma mão de sal, trago os pés moídos...".
       Subia-lhe às narinas aquele cheiro de pão e alcatra de cornichos…
       Júlia pressentia a partida, nunca o seu homem andara tão macambúzio, do seu homem sabia ela, como havia quem soubesse muito de outras coisas.
       Não lhe diria que estava seca, no corpo, na roupa, na alma; aquele som de terras novas puxava-o tempos e espaço de viver.
       Não tinha ela visto os olhos que lhe brilhavam quando o Manuel da Eugeninha vinha e trazia”dolas” e histórias contadas com ar de maravilha na venda do Américo.
       Arruma a cozinha… Guarda o alguidar… Sobem os degraus, sentam-se na cama e ele resolve! Sem palavras “políticas”, a sua onda de decisão envolve tudo.
       Vou prá América Júlia!
       Já não se doía!
       A folha nova no colchão de riscado cheirava a despedida.
       Batem os sinos na névoa do amanhecer, amarrado à burra de milho o Funchal ladra, a tigela do café fumega na mesa, a toalha alva, a mala amanhada no meio da casa, a mala feita da partida (no peito um alvoroço). Júlia guardou todas as lágrimas.
       Já não era a camioneta das quatro nem das sete, era um carro de praça, voando pela estrada do mato.
       As asas dos pássaros agitadas em adeus cobriam de saudade aquela mulher que tinha no peito a força do entendimento surdo.
       Sorrindo, fazendo do abraço um até breve, parecia a sua trança preta nódoa na paisagem.
       Ele direito, partindo, partindo, na beira da lancha.
       Alto e rude com todos os caminhos da terra impressos na face, partiu levando no peito a sua ave de arribação.


7 de janeiro de 2010

Regressos


       Calças aos quadrados, casacos em xadrez miúdo barrigas proeminentes, gravatas vermelhas, verdes, azuis e óculos, óculos com aros de bico d’estrela e dois brilhantes na ponta. Aros grossos com dioptrias a 50º a Norte do horizonte.
        Caía uma neblina de entardecer nas azáleas floridas.
        Eram meados de Maio. E o sol insistia.
       O cais enchia-se. Manhã cedo era uma azáfama, um corre, corre, a alcatra feita na véspera, noite fora, com ânsia de abraços, os bolos de massa sovada, cobertos de pano branco, cheirando a chegadas.
       A melhor roupa, o melhor fato e veste os pequenos, e mexe-te p’ráqui e mexe-te p’ráli. É dia de S. vapor, mas aquele vapor vinha a transbordar de parentes da América, de novidades, de alegrias.
       Festa do Divino Espírito Santo... os ilhéus voltam sempre
       Eram um quadro de vida, escorrendo ternura. O mar ondulando. Gente como marés, a terra esvazia-se e abre caminhos em direcção ao Oceano. Fala-se e espreita-se o horizonte e buzina o barco virando a ponta da ilha… as lágrimas já correm, os pequenos sobem ao farol, saltam inquietos.
       Numa enxurrada chegam-se à beira.
       Os abraços caem como a saudade… frutos maduros.
       Á Francisco, estás tão profeito!
       E já no cais vão combinando, que o Chico é mordomo e vai coroar e dá a Função...
       Á Francisco na t’apoquentes foi mê pai que criou o bezerro.
       Ilhas não têm só partidas, são também terras de chegadas.
       E está tudo na mesma, a horta, o quintal.
       Tudo brilha, escasqueadinho.
       E trazem lembranças e enchem-se as gavetas de roupa corações de agradecer, palavras de felicidade em reboliço
       E faz-se a Função, enchendo o quintal de mesas e bancos, os meninos saltam e correm vestidos de branco, volitando anjos na lembrança para o tempo de recordar.
       Nas panelas ferve a sopa do Espírito Santo com raminhos de hortelã, o vinho corre p’los copos quais bodas de Canaan.
       São os olhos a transbordar de afeição, o tudo saber o sonho final.
       E é cais de novo porque os dias não fingem que o são.
       A buzina do barco, um choro com sentido incomoda e rói.
       O tempo daqueles doze meses há-de escoar-se em marés de retorno.
       Um lenço que acena, uma lágrima que diz:
       -Até p’ró ano!
       -Até p’ró ano!


5 de janeiro de 2010

João da Quintã

       Contagiados de doçura; entretendo nas mãos lentas e calejadas, nascem histórias todas as manhãs no alto da madrugada, histórias p'ra que se conte que no mapa da vida há o povo Beiraltino...
       No respirar da aragem enredada de brisa, baloiça-se a vida a Nascente virada, cerzindo os dias com pespontos de ternura...
        Povo de sonhos vestido.
       Que queriam que João da Quintã fizesse?... Se lhe habitava no peito o mistério dos silêncios e distâncias em sons de uma nota só.
       Lançado todo em poços de sossego, com o rumor de luas novas, espiga parada no tempo lenta e morna, agarrando-o dedos de paz à terra, espanto que jamais se esvazia.
       À boquinha da noite João, enxada ás costas abria  a poça, sentindo no corpo a leveza daquele rio rasgão desanuviado, sábio e puro.
       Maneando o corpo encaixilhado de ventanias e nevões, regressa quando se põe na janela dos montes o sol tremido como o queijo que Tonica mete na francela.
       João da Quintã não deixaria aquela terra, por mais que o seu Manel dissesse que fosse... ele queria lá ir p'ra França que o deixassem, que para ele umas papas d’unto p'ra comer c’um fuso, descanso e bô trato, era quanto queria, p'ra donde havera ele d’ir?...
       Ele tinha o tempo inteiro medido por sementeiras e colheitas, ampulheta da vida ás suas ordens, flor ondulada, até à alva manga da alma.
       Amochado na lareira, remoía os seus segredos renovados, num inundar de silêncios, mexendo os torresmos num estrugido lento:
       Oh mulher as trempes estão mancas! Um raio te pelira,merca-me oitras...
       Cando te pôes a tagarelar c’a comadre n’um t’alembras de mais nada... pranta-me mas é a malga na pranheira...
       Solta-se-lhe o rosto num riso sorriso, estendendo a Tonica um bocado de chicha chôna na ponta da faca.
       A casa da vida temperada a frio, a pino no peito... abarcando o mundo todo trazendo-o embebido, serpente ondulada.
       Na névoa do seu quarto cheirando a pinho e a palha nova, colchão de riscado, cintilam os seus olhos embaciando lágrimas na vidraça, dispersando cantos de recordação, como se tudo aquilo fosse um milagre.
       Cansado adormece na lentidão do lançar das sementes... A norte e a sul da moradia da noite, a cenam-lhe em recados de ternura as mãos da terra.
       Aberto seu ser que nado e avisado foi quando nascido ás coisas que subtilíssimas passam dentro do coração dos homens.
       O calor que vem da terra, sombra de árvore, regato cantando tem no seu peito morada urgente.
       Naquela dura terra, rasgada, ele era um hino feito de saudade herdada das vozes ausentes.
       E as mãos do mundo de nada vestidas, nada podiam contra esta herança no coração de João plantada...
       Que ser Beirão é ser semente, campo, seara, janela de horizonte desmedido... Ave liberta na casa do sol, por dentro do peito vestida cada madrugada.

2 de janeiro de 2010

Zé Lasca, Homem-menino da Beira-Alta...

       ... Eram quatro estações, e outra ainda... Zé Lasca, lá por Janeiro, erguia-se cedo, que o bibo já se não prantava quedo. Brilhava a geada por cima dos lameiros, e ao sair de casa toda a beleza dos candiotes, fez acordar a sua alma de criança. Esqueceu então os ralhos de infância e meteu à boca gulosa, um pedaço daquele quase cristal reluzente, e com um gesto de repentina maturidade, atira-o longe, lá para o quinchoso da Maria Riça, e berra das escaleiras:
       - Olinda, põe-me o caldo na malga...
Sobe os degraus gastos do tempo e do caminhar, senta-se à lareira e na malga esbeichulada, cheia de caldo requentado miga uma carola de pão milhão, que Olinda tirou do açafate...
       - Miga mais home, que te dá sustento e deixa o fundinho ao garoto, qu’até anda estrepassado de fastio...
        - Cala-te lá mulher, ele tem é por lá bichas, dá-lhe chá da hortelão qu’ele bota-as...
       Já quente do caldo, põe a pila, abafando aquele calor d’água e unto, e num jeito de criança, limpa-se ao canhão, cobre a capucha e vai à loja tirar o bibo, seguindo manhã fora, gado na frente tinindo campainhas, lá p’ró lameiro da Moirisca.

       Olha ao redol, não benha algum lobo abocanhar a chiba moicha, qu’inda vai dando um leitito, que dá p’ra fazer um queijo e um grochito p’ró panelo...
       Zé Lasca sossegado, vira o bibo, que a marcação já está perto. Encosta-se ao penedo abrigado e escalece no sono, aquecendo ao sol de Inverno a pele chisnada do cieiro.
       Já vai baixo o sol, já vira de lado, é tempo de regressar que o bibo está farto, Já levam as bazias rasas, e no seu tempo morejado aos minutos, Zé vai lestro, enxada ás costas assobiando uma modinha das suas, que a mulher inda vai cozer a fornada...
       - Mete o gado na loja e a chiba no cortelho, espeta o pau no cravelho e sobe as escaleiras.       Já Olinda tem o formento feito e a farinha peneirada...
       - Ó Zé acende o lume, enchaugua a panela dos porcos e enche-a de água limpa. E quando puderes vai à salgadeira e traz-me uma malga de sal, que é preciso escolher as sãs...       Olinda tempera a água e amassa o pão, enquanto o Zé faz os bassoiros de gestias, que trouxe do monte; carregando com os apetrechos para o forno, espera que Olinda lhe leve o molho já enfeixado...
       - Aquece-me depressa o forno, não vá o pão ficar azedo...
       - Já começas tu, mulher! Inda agora cheguei c’os animais...

       Vai falando o Zé, e aquecendo o forno, barriscando-o com o redadoiro mais curto...
      Pão tendido, leva-o Olinda p'ra cozer, coberto no tabuleiro, que a vizinha lhe ajuda a erguer, e diz ao filho:
       - Roda já na minha frente, vai lá p’ró pé do teu pai que andas aí cheio de frio, e põe a griseta dentro dos vidros...       O forno já quase que cheira a bôla quente, e o calor dá vida e alma aquele espaço onde se transforma trabalho em alimento. Olinda tira um bocadinho de massa de um pão para o bôlo do garoto.
       Fecham a porta do fornico para o pão apanhar virtude.
      - Ó Zé olha que o forno está c’o moirão bem saído, vê lá se mo deixas queimar!... Ai Jesus, nem fiz a bôla co’a carne da neta!...
       Enquanto o pão coze, rezam dois padre-nossos p’los seus falecidos.
       - Ó Zé vê lá as bôlas, que já devem estar chuchadas, e o bôlo do garoto deve estar mais que cozido...       Pega na pá de ferro, e num gesto hábil tira as bôlas dianteiras. Olinda tira-as da pá co’a ponta do avental, bate-lhe com a ponta dos dedos na côdea de baixo.
       - Eu num te disse, que estavam chisnadinhas, parecem ossos...       Espera no tabuleiro o pão, que se sai ao ar dá a côdea; Zé Lasca não resiste aquele cheiro, inda está co’a tigela d'água d'alho. Entrementes pega na bôla o corta-lhe uma borda.
       - Troixeste uma pinga, ó mulher? Dá-me cá a cântara que já o pranto a enbornecer...       Olinda segue-lhe o jeito, e tira uma bocada que devede com o fiIho.
       - Anda Zé mexe-te! Vai buscar o caldeiro e deita-lhe o borralho, e o garoto que traga a linterna...
       O frio corta e o codo já luze nos caminhos. Mal chega a casa, Zé, desce o tabuleiro à mulher e despeja o caldeiro no meio das panelas p’ra ir aquecendo a labaije ao porco. Entre o caldo de cebola e a borralheira, o garoto esfrega os olhos aninhando-se no colo do pai.
       Vozes antigas habitam Zé Lasca, que nos dizem das madrugadas com sabor a neve, a sol, a terra regada. Abrem-se-lhe os gestos, que se soltam em campos lavrados, milhos crescidos, searas loiras, teias urdidas, sabor a brôa, espalhando entre dores e sorrisos sementes de amor pelo vento que as recria, e sorri doridamente que o Inverno é longo e pardo.
       A aldeia é assim a quinta estação de Zé Lasca, ondulando na esperança dos homens-meninos, que ainda sonham. Certo do seu segredo, guarda-o num bolso fundo, e põe para florir uma rusga de saudade, construindo na alma um ritmo ao fado, crescendo na tarde um som que a palavra não diz, que a enxada moreja, trazendo o cansaço tão de mansinho como se de luar se tratasse.
       Zé Lasca deita-se na cama de estôpa e palha que é seu trabalho e adormece o seu encanto subtil com a simplicidade que trespassa a noite tonta e longa de gelo...
       É pois assim o Zé e a terra, uma giesta florida um monte de nada e tudo...
       Um candiote cristalizado no beiral da sua casa, um cuco cantando p’lo mês de Maio...
       Outra madrugada, de uma quarta estação e parte de novo Zé Lasca, vendo correr as horas nos seus sonhos por descobrir!