10 de janeiro de 2010

Sortilégios

       O seu coração tinha uma varanda. Era dela que via o mundo.
       Não sabia se toda a gente tinha uma varanda; nem se tão pouco uma janela.
       Tinha também uma casa habitada pelos seus sonhos, pelas suas dúvidas pelas certezas, e também pelas incertezas.
       Nela sentia-se protegida. Por isso, habitava-a plenamente, jamais se sentindo só em toda a sua solidão.
       Á medida que o tempo passava, mais ia sentindo a quietude daquele lugar-casa-moradia-do-coração. Era lá o seu descanso, onde estava tudo aquilo que era importante.
       É verdade que a vida é cheia de coisas, de experiências, e acontecimentos, mas parecia-lhe igualmente verdade que só alguns são verdadeiramente importantes.
       Aquela sua casa tinha um quintal e um ar cheio de muitas árvores, ela havia de encontrar o caminho de outras portas. Porque ali era Primavera, e andava tudo a florir. Ela havia de encontrar o sítio onde as suas mãos costumavam ir apanhar frutos.
       E foi assim que um dia percebeu, que estava a esquecer as pessoas.
       Por mais estranho que parecesse, a sua presença habitava também a sua casa redonda.
       Assim, esta era parte da sua realidade, já que toda a realidade se baseia na certeza, mesmo perante os desígnios mais improváveis. Era para isso que servia aquela casa, para dar guarida até para aquilo que havia de mais impossível.
       Não podia deixar que toda a existência lhe soubesse a um silêncio magoado.
       Existir era uma sorte e um dom.
       Tinha que haver outra forma de estar e sentir, um sítio redondo, inteiramente leve e simples.
      Ela sabia que havia alguns sítios onde se podia estar mais próximos dessa moradia interna, junto aos rios, por exemplo.
       Mas é sobretudo no peito que há um espaço tão imenso, e nele tudo cabe. Cabe, porque só aí tudo é inteiramente leve e simples, porque só aí se dá, e se não pede, coexistindo o pequeno e o grande, o pesado e o leve, o perto e o longe, o agora e o antes, o futuro e o passado, o que somos, e aquilo que nos define e marca para sempre.
       Aí não existem viagens para sempre, mas apenas maneiras diferentes de sermos, coisas tão imensas que temos de as guardar ao centro, no lugar do peito, para as não perder.
       É que as verdades, as grandes, as imensas, aquelas que são realmente importantes, fazem-se da matéria dos sonhos:
       - Jamais se gastam!
       Tinha levado o tempo todo a esperar, e estava ali.
       Talvez fosse uma outra, que não ela, pensando por ela com o seu rosto.
       E essa, sabia ao que era.
       Sabia, que do fundo do tempo imponderável, e sem estações do ano, alguma coisa muito verdadeira e inicial a levara até ali.
       Uma sinfonia de luz e vento brando erguia-se em acordes na sua cabeça, enquanto os seus olhos se enchiam de sal e água pura. Uma ave entrou, vinda dos confins da noite.
       Pensou que era assim que a semente do trigo se devia sentir no fundo da terra. E decorou para sempre o coração dele.
       Quem chamaria nos seus sonhos?
       Não ela! Mas a mulher que nela dormia, cansada de preconceitos, cansada de olhar a sua pele, de navegar na noite acesa dos seus olhos, e nunca se ter permitido mostrar, com seus desejos de terra fértil.
       Ele fizera-a sentir-se reconciliada com essa mulher, que renascia, e estava ali cheia de paz, acreditando que o amor pode ser.
       Tinha-se debruçado naquelas paisagens do peito, do coração!?
       E continua a encontrar as marcas da sua presença na vida dela, penetrava nelas, deixando-se ir, diluindo-se na leveza transparente do sentir.
       Comoveu-se.
       Constatou que aquele sentir era como o mar, tão imenso, que só no sentir lhe podia tocar.



1 comentário:

  1. "... diluindo-se na leveza transparente do sentir.
    (...) Constatou que aquele sentir era como o mar, tão imenso, que só no sentir lhe podia tocar."

    Quantas vezes eu ao sentir, apenas não sabia pôr em palavras, que me diluia na leveza da sua transparência.

    Ou sentia com tanta intensidade, por exemplo a brisa numa noite de Verão e a promessa de liberdade que essa brisa nessa moite me trazia, e apenas não sabia dizer que era um sentir tão imenso, que só no sentir lhe podia tocar.

    Mas saber escrever também é isso, é saber dizer como nunca ninguém antes foi capaz.

    Daniela..

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