2 de janeiro de 2010

Zé Lasca, Homem-menino da Beira-Alta...

       ... Eram quatro estações, e outra ainda... Zé Lasca, lá por Janeiro, erguia-se cedo, que o bibo já se não prantava quedo. Brilhava a geada por cima dos lameiros, e ao sair de casa toda a beleza dos candiotes, fez acordar a sua alma de criança. Esqueceu então os ralhos de infância e meteu à boca gulosa, um pedaço daquele quase cristal reluzente, e com um gesto de repentina maturidade, atira-o longe, lá para o quinchoso da Maria Riça, e berra das escaleiras:
       - Olinda, põe-me o caldo na malga...
Sobe os degraus gastos do tempo e do caminhar, senta-se à lareira e na malga esbeichulada, cheia de caldo requentado miga uma carola de pão milhão, que Olinda tirou do açafate...
       - Miga mais home, que te dá sustento e deixa o fundinho ao garoto, qu’até anda estrepassado de fastio...
        - Cala-te lá mulher, ele tem é por lá bichas, dá-lhe chá da hortelão qu’ele bota-as...
       Já quente do caldo, põe a pila, abafando aquele calor d’água e unto, e num jeito de criança, limpa-se ao canhão, cobre a capucha e vai à loja tirar o bibo, seguindo manhã fora, gado na frente tinindo campainhas, lá p’ró lameiro da Moirisca.

       Olha ao redol, não benha algum lobo abocanhar a chiba moicha, qu’inda vai dando um leitito, que dá p’ra fazer um queijo e um grochito p’ró panelo...
       Zé Lasca sossegado, vira o bibo, que a marcação já está perto. Encosta-se ao penedo abrigado e escalece no sono, aquecendo ao sol de Inverno a pele chisnada do cieiro.
       Já vai baixo o sol, já vira de lado, é tempo de regressar que o bibo está farto, Já levam as bazias rasas, e no seu tempo morejado aos minutos, Zé vai lestro, enxada ás costas assobiando uma modinha das suas, que a mulher inda vai cozer a fornada...
       - Mete o gado na loja e a chiba no cortelho, espeta o pau no cravelho e sobe as escaleiras.       Já Olinda tem o formento feito e a farinha peneirada...
       - Ó Zé acende o lume, enchaugua a panela dos porcos e enche-a de água limpa. E quando puderes vai à salgadeira e traz-me uma malga de sal, que é preciso escolher as sãs...       Olinda tempera a água e amassa o pão, enquanto o Zé faz os bassoiros de gestias, que trouxe do monte; carregando com os apetrechos para o forno, espera que Olinda lhe leve o molho já enfeixado...
       - Aquece-me depressa o forno, não vá o pão ficar azedo...
       - Já começas tu, mulher! Inda agora cheguei c’os animais...

       Vai falando o Zé, e aquecendo o forno, barriscando-o com o redadoiro mais curto...
      Pão tendido, leva-o Olinda p'ra cozer, coberto no tabuleiro, que a vizinha lhe ajuda a erguer, e diz ao filho:
       - Roda já na minha frente, vai lá p’ró pé do teu pai que andas aí cheio de frio, e põe a griseta dentro dos vidros...       O forno já quase que cheira a bôla quente, e o calor dá vida e alma aquele espaço onde se transforma trabalho em alimento. Olinda tira um bocadinho de massa de um pão para o bôlo do garoto.
       Fecham a porta do fornico para o pão apanhar virtude.
      - Ó Zé olha que o forno está c’o moirão bem saído, vê lá se mo deixas queimar!... Ai Jesus, nem fiz a bôla co’a carne da neta!...
       Enquanto o pão coze, rezam dois padre-nossos p’los seus falecidos.
       - Ó Zé vê lá as bôlas, que já devem estar chuchadas, e o bôlo do garoto deve estar mais que cozido...       Pega na pá de ferro, e num gesto hábil tira as bôlas dianteiras. Olinda tira-as da pá co’a ponta do avental, bate-lhe com a ponta dos dedos na côdea de baixo.
       - Eu num te disse, que estavam chisnadinhas, parecem ossos...       Espera no tabuleiro o pão, que se sai ao ar dá a côdea; Zé Lasca não resiste aquele cheiro, inda está co’a tigela d'água d'alho. Entrementes pega na bôla o corta-lhe uma borda.
       - Troixeste uma pinga, ó mulher? Dá-me cá a cântara que já o pranto a enbornecer...       Olinda segue-lhe o jeito, e tira uma bocada que devede com o fiIho.
       - Anda Zé mexe-te! Vai buscar o caldeiro e deita-lhe o borralho, e o garoto que traga a linterna...
       O frio corta e o codo já luze nos caminhos. Mal chega a casa, Zé, desce o tabuleiro à mulher e despeja o caldeiro no meio das panelas p’ra ir aquecendo a labaije ao porco. Entre o caldo de cebola e a borralheira, o garoto esfrega os olhos aninhando-se no colo do pai.
       Vozes antigas habitam Zé Lasca, que nos dizem das madrugadas com sabor a neve, a sol, a terra regada. Abrem-se-lhe os gestos, que se soltam em campos lavrados, milhos crescidos, searas loiras, teias urdidas, sabor a brôa, espalhando entre dores e sorrisos sementes de amor pelo vento que as recria, e sorri doridamente que o Inverno é longo e pardo.
       A aldeia é assim a quinta estação de Zé Lasca, ondulando na esperança dos homens-meninos, que ainda sonham. Certo do seu segredo, guarda-o num bolso fundo, e põe para florir uma rusga de saudade, construindo na alma um ritmo ao fado, crescendo na tarde um som que a palavra não diz, que a enxada moreja, trazendo o cansaço tão de mansinho como se de luar se tratasse.
       Zé Lasca deita-se na cama de estôpa e palha que é seu trabalho e adormece o seu encanto subtil com a simplicidade que trespassa a noite tonta e longa de gelo...
       É pois assim o Zé e a terra, uma giesta florida um monte de nada e tudo...
       Um candiote cristalizado no beiral da sua casa, um cuco cantando p’lo mês de Maio...
       Outra madrugada, de uma quarta estação e parte de novo Zé Lasca, vendo correr as horas nos seus sonhos por descobrir!

4 comentários:

  1. Não sei o que é o Bibo, o que é um candiote, e o que é Morejar.. e tambem não encontrei nenhuma destas três palavras no dicionário.

    Daniela

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  2. Dava-me jeito saber o significado destas palavras para compreender melhor a história.

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  3. Estes regionalismos muitas vezes não se encontram nos dicionários, eu procurei em dois diferentes e não encontrei.

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  4. O Bibo - Gado vivo, cabras, vacas, que se levam a pastar.
    Candiote - Gelo tipo estalactite, que se forma por exemplo com a água que escorre dos telhados.
    Morejar - Trabalhar no campo.

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