8 de janeiro de 2010

Ave de arribação

       ... Era uma vez uma mulher chamada Júlia... tinha dois olhos lagos azuis, cinco filhos e passava os dias a correr por fora, embalando ternuras no peito...

       Joaquim era assim um "lobo-do-mar" (sem cachimbo), tinham-lhe dado à nascença o universo das palavras despedidas, numa nebulosa de inquietação.
       Passeando o seu corpo d’ilheu lá prós lados do Fanal, bebia as horas como sanguessugas, arrastando sapatos de silêncios escorridos.
       Quatro horas... apanharia a camioneta, ali na Carreirinha, tanto montava. Aquela hora já lhe tinha ordenhado as vacas (a sua Júlia que nunca lhe tinha dado uma escândula).
       Irritava-se todo, ouvindo palavras daqui, palavras dali...
       ... E as terras não dão... e o padre que diz:
       "Abençoadas esmolas que vem pró Divino Espírito Santo... e é muito dinheiro, que aquilo da América é terra de fartura...”
       Ele era ave de arribação.
       Como o vento... como aqueles caniços ali tremendo contra as rochas, à espera de mãos de menino de aventura.
       Como lhes havia de dizer que ia prá América?
      Entre o cheiro de gasóleo e o engrenar das mudanças, chegou a casa, portas dentro do seu sonho escondido.
       Senta-se quieto e mudo no banco pintado d'azul mordendo a véspera das palavras.
       Júlia metia a pá no forno. O cesto das vindimas c’os pintos lá dentro era uma onda irrequieta como aquele seu coração.
       "Ó Júlia dá-me a celha, e bota-lhe uma mão de sal, trago os pés moídos...".
       Subia-lhe às narinas aquele cheiro de pão e alcatra de cornichos…
       Júlia pressentia a partida, nunca o seu homem andara tão macambúzio, do seu homem sabia ela, como havia quem soubesse muito de outras coisas.
       Não lhe diria que estava seca, no corpo, na roupa, na alma; aquele som de terras novas puxava-o tempos e espaço de viver.
       Não tinha ela visto os olhos que lhe brilhavam quando o Manuel da Eugeninha vinha e trazia”dolas” e histórias contadas com ar de maravilha na venda do Américo.
       Arruma a cozinha… Guarda o alguidar… Sobem os degraus, sentam-se na cama e ele resolve! Sem palavras “políticas”, a sua onda de decisão envolve tudo.
       Vou prá América Júlia!
       Já não se doía!
       A folha nova no colchão de riscado cheirava a despedida.
       Batem os sinos na névoa do amanhecer, amarrado à burra de milho o Funchal ladra, a tigela do café fumega na mesa, a toalha alva, a mala amanhada no meio da casa, a mala feita da partida (no peito um alvoroço). Júlia guardou todas as lágrimas.
       Já não era a camioneta das quatro nem das sete, era um carro de praça, voando pela estrada do mato.
       As asas dos pássaros agitadas em adeus cobriam de saudade aquela mulher que tinha no peito a força do entendimento surdo.
       Sorrindo, fazendo do abraço um até breve, parecia a sua trança preta nódoa na paisagem.
       Ele direito, partindo, partindo, na beira da lancha.
       Alto e rude com todos os caminhos da terra impressos na face, partiu levando no peito a sua ave de arribação.


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