29 de dezembro de 2017

Mulher da Beira


Tem no avental sua graça, nos braços, a pele trigueira, nos lenços um ar vaidoso.
No “tic-tac“ da tamanca, na barra da sua saia, ou de merino, ou de estopa, orgulhosa da forreta…
Esta é a menina – mulher, e é bela, no balançar das argolas carniceiras, que lhe brincam nas orelhas…
Abre cortes e cortelhos, e enrola a sua trança, tem a frescura da cor que lhe dá a natureza, até onde a vista alcança.
É sensível ao canto da passarada, à cigarra e aos grilos, ao som da água a regar, ao brotar dos seus mimos que tem no quinchoso a guardar…
Mas é forte na desgraça, e é trave mestra da casa!
Ri, no rio, embandeirando lençóis, alvos de linho, corpetes, saiotes, toalhas, que estendidas, vão corando pelo chão…
Com cantigas os fiou, e os bordou, nas noites frias e longas, na palha da loja ao serão.
É feliz esta mulher, que é Beirã, porque guarda no peito segredos, sabedorias, e da vida, sabe coisas, já das avós aprendidas.
Vem do campo, no regaço, um punhado de feijões… um molho de caldo à cabeça…
Lá vai ela, entra em casa, acende um lume, aconchegadinho com chamiças… enxaguando panelas e potes…
E os garotos até esperam que ela asse um coirato… ou seja dia de cozer… que o forno “cheira a quente”, e na maceira, aconchegada, está a malga do crescente.
Vai a canchas–pernas, na burra, manhã fora…
Manhã fora; rosto entregue ao vento, e não deixa de ser airosa.
Sacha milho e milhão, em Cavilhar Dianteiro… e na volta inda dança uma modinha no terreiro…
E é Domingo, dia de ir ver a Deus, que a beirã, é mulher crente, e tem fé e reza e pede, por todos, p’los oitros, p’los seus…
Mas esta mulher da Beira, alegre, ou triste, loira ou trigueira, traz um menino no ventre. Labuta, cria os outros, que lhe andam à volta dos dias, como um fado, ou um baile e enrola o mais pequeno, no aconchego do xaile…
Tem crendices… sabe rezas e acredita em sinais, que em segredos encerra…
E diz que vai chover, quando as “salamantegas”, andam ao lasso da terra…
Quando as névoas lancheiras vêm da Senhora da Lapa…
Quando zurra o burro no Zonho...
São histórias que parecem sonho, mas não são!
E aquele “aurgueiro” no olho, tem a sua reza também:

“Estrelinha da banda dalém
Tira o aurgueiro qu’esta vistinha tem
Agora, aqui neste dia
Padre-Nosso, Avé-Maria!”

Tanto, tanto, por contar, tanta coisa por dizer…
Mas somos nós, os mais novos, que temos orgulho em saber, trazer à boca do povo, a riqueza que aqui se esconde…
Da camisa que é de linho,
E peitilho de riscado,
Da fisga de andar aos melros,
Do cabrito ensopado,
Do coelho com carqueja,
Do conto, contado à lareira,
Da história do João Soldado,
Que foi na guerra abandonado,
Da oração ao Santo António,
Ao “aberto”, ao “desnocado”,
Do escanar e da malhada,
E do grito da cegada,
Do carro e dos estadulhos,
A transbordar palha fora,
Chiando pelos caminhos,
Que a noite já ali mora,
E no colchão de riscado,
Que é fruto do seu trabalho,
Adormece esta mulher, que é Beirã, é bela, e diferente…
E é sobretudo o rosto da Beira, da aldeia, e desta que é nossa gente.


(Pelo que a Beira me deu p'la falta de "muita ilha")


Sem comentários:

Enviar um comentário