7 de março de 2010

Tia Adelaide (Tia Baida)

     
       A uma mulher extraordinária que habitou a minha infância, e que do mundo mágico que era o seu quarto, do alto do leito que a aprisionava, da sua cama de dossel, ensinou-me que não existem grades quando na imaginação temos asas, no pensamento aves, e nas palavras encantos.
       Que bom ainda é fazeres parte das memórias da história da minha vida...!

       Abria-se na vidraça um rastro de chuva os olhos semeavam silêncios, na rua o caminhar pacífico de quem tem e conhece todos os caminhos.
       Nunca um olhar foi tanto gente!
       Baida fora bonita (ainda o era) tinha percorrido os caminhos da vida com sabedoria, cheia de leveza, cabelo cor de vento, emprestando sons e rituais à sua voz ... e sabia coisas e contava histórias e ria num riso sorriso...
       No canto do mundo que é a sua terra, Baida era uma poalha de estrela.
       A cortina caiu.
       A vida era estranha e magoada... um homem de branco... dois médicos... trinta médicos... e Baida sorria ainda.
       Passeou dentro de si aquela dor de não mais correr, não mais saltar. E a alegria ainda coube no peito dela.
       Retirei-a breve, num poema gerado, eu, de pele porosa... um campo feito... um sobressalto, retomei-a nos dedos cobertos de sal e numa asa, laço de amizade digo-lhe.
       Que é nos seus olhos que habita a vida, ressalta, explode, brilha, comunica e envolve.
       Ela mudava a cor da parede, o lugar da mesa, talvez do quadro, podia mudar tudo, rejuvenescendo a paisagem que tinha dia sim, dia sim, sentir viva e nova para respirar.
       Passaria o tempo contando as flores da almofada que adornava o sofá...
       Ouvindo Beethoven e Bach... ler, conversar...
       Mas quem lhe dizia que tinha duas estrelas no fundo dos olhos, dois lagos sem fundo. E eu, correria louca, inconformada, aprendi dentro deles o verbo esperar, a regar o tempo como flores sedentas com mares de calma e sal.
       Caí no tempo, agitei-me, tentando reunir o sentido íntimo que já tinha adormecido nos dias de turbilhão.
       Toquei-me de palavras caladas e silêncios gritantes.
       Valia a pena.
       Viver só, é duro, viver na penumbra, dói, calar, mata!
       Baida no espaço do tempo dividido em quatro estações, tinha uma outra estranha, mas maravilhosa estação. É pois assim, Baida e o seu quarto, ondulando na esperança dos adultos-meninos que ainda sonham.
       E digo que a ilha e o quarto serão para Baida a minha hortênsia florida, o círculo do sereno existir.
       O mundo da Ilha dos Bravos, cristalizado no mundo dela!

       E tal como ela me ensinou, a melhor maneira de aprender a escrever, é escrevendo, não importa tarde ou cedo... Deixo pois a promessa de vos vir a contar todas as histórias que duas crianças viveram com enorme magia e cumplicidade, orquestradas e “dirigidas” unicamente, pela imaginação e vivacidade desta mulher, que tinha a sabedoria de saber existir.


(anaicfer.bloguepessoal.com)

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